Camille Claudel

Uma Mulher

2010-01-01

(Observação prévia e importante: as mensagens, neste blog, são colocadas em sentido inverso, ficando as mais recentes em último. Deste modo, fazendo "scroll down", vão seguindo cronologicamente a colocação dos textos sobre a artista e sobre o espectáculo que se prepara)


Este, pretende ser um espaço dedicado à divulgação da magnífica obra

da genial escultora
Camille Claudel,
dando também notícia da sua vida de dramática e, aos nossos olhos de hoje,
inacreditável e inqualificável dimensão.


Servirá, igualmente, para apresentar e acompanhar um projecto
que visa a montagem de um espectáculo, com texto, encenação e coreografia de

Ruben Marks.


Camille Claudel
(8.12.1864-19.10.1943)



Camille Claudel - uma artista esmagada pela sociedade de seu tempo - deixou a sua marca na história da arte, impressa à custa de um imenso sacrifício pessoal. Além da divulgação da obra de Camille Claudel, tenta-se aqui, também, dar a conhecer a mulher, denunciando o destino de autêntica punição para onde a remeteram em vida, só porque tentou viver com autenticidade os seus sentimentos apaixonados pela arte e por um homem.
Ver um vídeo sobre a obra de Camille Claudel, no Youtube, com música de Keith Jarrett



Sakountala
(também conhecida por “O abandono” ou ainda por “Vertumno e Pomona”, deuses da mitologia romana, nomes que a própria Camille também considerou)


Escultura de Camille Claudel, de uma delicadeza ímpar, que obriga a uma reflexão sobre o destino. Com ela, a artista pretende dar vida a um kamasutra artístico inspirado no famoso poema indiano, reelaborado a partir do poeta Kalidasa, séc. IV e V, e contado por Vyasa no Mahabharata, tendo sido depois traduzido magistralmente por Goethe. Esse poema inspirou igualmente Franz Schubert (1797-1828) para o seu “Singspiel Sakuntala”, em 1820, e Franco Alfano (1875-1954) para a sua ópera baseada na lenda de Sakountala, em 1921.

Baseando-se numa história hindu, de mistura com a mitologia grega, na qual a protagonista é a ninfa Sakountala, Camille coloca a mulher abandonada nos braços do homem suplicante. A mulher está de tal maneira equilibrada que mal toca o corpo do homem, não chegando sequer a prender o homem num abraço. Esse abandono resume-se, portanto, a uma inclinação da cabeça e de um braço. O gesto, de uma extrema suavidade, é tão delicado que parece uma concessão ao apelo do homem, cujo abraço também é gentil e não traduz esforço, apenas afecto. O corpo do homem também mostra delicadeza e uma certa fragilidade, não exibindo músculos fortes como vulgarmente o corpo do homem é apresentado.

Dir-se-ia tratar-se de uma imagem de bem-estar, que só o amor puro permite alcançar. É a ideia de elevação espiritual na experiência amorosa, representada com uma leveza e espontaneidade absolutamente sublimes.

O irmão, Paul Claudel, escreveu sobre esta obra: “(…) (nela) o espírito é tudo; o homem ajoelhado não é mais que desejo; com o rosto levantado aspira, mais do que se atreve a segurar, este ser maravilhoso, esta carne sagrada que, de um plano superior, lhe coube como sorte. Pesada, ela cede a esse peso que é o amor; um dos braços pende, separado, como um ramo que termina no fruto; o outro cobre-lhe os seios e protege o coração, supremo asilo da virgindade. É impossível ver algo ao mesmo tempo mais ardente e mais casto”.



(por Ruben Marks)
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Camille - Uma Mulher
ou
A Paixão segundo Camille
pelo TAN - Teatro a Norte/Ruben Marks
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Sobre a ideia da montagem de um espectáculo


“Só a arte e a poesia contam na vida. Todas as convenções da
família, da sociedade e da religião não são mais que enganos”
(Camille Claudel, aos 18 anos)



Há muitos anos atrás, por volta de 1975, ao ler um livro de Paul Claudel, “L'oeil écoute ”, onde se encontra um texto sobre uma sua irmã escultora, tomei pela primeira vez conhecimento da vida e obra de Camille Claudel. A impressão primeira, foi de tal modo forte e marcante, que não tardei em iniciar uma pesquisa e recolha de dados sobre ela, adquirindo livros, escritos, catálogos, fotografias, etc., que a retratassem, na vida e na arte.

Desde aí, alimentei sempre a esperança de poder um dia montar um espectáculo cénico sobre essa vida dramática de Camille Claudel, lutadora incansável pela afirmação da sua arte, apaixonada e afogada num romance amoroso com o escultor Rodin, odiada pela mãe e abandonada a morrer num Hospício de doentes mentais, mesmo pelo irmão que lhe havia jurado apoio eterno. Para isso, fui mesmo elaborando um guião dramatúrgico e coreográfico.

Porém, as normais dificuldades em conseguir apoios técnicos e logísticos para concretizar projectos de teatro em Portugal, nomeadamente em conseguir espaços de representação grandes e bem equipados, foram adiando irremediavelmente essa ideia, que se viu remetida para uma gaveta durante 35 anos.

Neste momento e aproveitando o facto de perfazer, neste ano de 2009, os meus 45 anos de carreira (o meu primeiro trabalho profissional para teatro data de 25 de Outubro de 1964, tendo a carreira docente no ensino oficial começado também por essa altura), decidi retomar a ideia e tentar, de novo, conseguir alguns apoios para levar à cena esta velha ideia.

(por Ruben Marks)





Camille - Uma Mulher
ou
A Paixão segundo Camille
Espectáculo de Ruben Marks, pelo TAN-Teatro a Norte / Ruben Marks
Sobre o espectáculo - 1

O meu primeiro escrito de algum relevo, entre uma pobre produção na juventude, aconteceu aos 18 anos e tratou-se de uma reflexão sobre a situação social da mulher, que eu, já na altura, entendia como injusta e desmerecedora.

Não admira, assim, que, ao longo de toda a minha vida, tenha pugnado pela defesa de um estatuto elevado e digno para a mulher, de igual parceria com os homens na construção do futuro da humanidade, tanto no aspecto social, cultural e político, como no aspecto humano em toda a sua dimensão.

Para isso, também contribuiu o meu percurso profissional, que, ao longo de 45 anos, tanto no ensino, como nas artes cénicas, especialmente na dança, tem sido trilhado, de forma esmagadora, em contacto com mulheres, que, nestas áreas, marcam presença forte e maioritária em comparação com os homens. Essa situação, deu-me a possibilidade de estar atento ao mundo feminino, de uma maneira que a maior parte dos homens nunca pode fazer.

Como criador, sendo profundamente sensível a todas as questões de cidadania, ou seja, de profundo e sagrado respeito pelo outro e de delicadeza no relacionamento humano, tenho, por isso, tido oportunidade de abordar o sensível feminino nalgumas obras artísticas, para além de dedicar muitos pensamentos e muitos escritos a essa “causa”. Não como “cavaleiro andante” em sua defesa, que não precisam, mas como simples e humilde observador de injustiças.

Compreendido isto, é fácil perceber que este espectáculo que agora apresento, depois de 35 anos em “incubadora”, pode significar uma homenagem à mulher, revelando diferentes facetas caracteriais do vasto mundo sensitivo feminino.

Acresce a tudo isto, que, ao longo da minha vida, sempre me senti atraído e entusiasmado pelas figuras de certo modo heróicas de mulheres artistas, rebeldes, místicas, revolucionárias, apaixonadas e de vidas dramáticas.

Conservadas em submissão durante milhares de anos, as mulheres eram (ainda o são hoje em muitas zonas do mundo) mantidas dia e noite, sob o domínio dos varões. “As mulheres são criadas apenas para agradar aos homens. (…) Como são incapazes de julgar por si próprias, devem sempre ater-se ao juízo dos pais e dos maridos”, escreveu Rousseau, um dos mais conceituados pensadores e pedagogos do séc. XVIII. Afirmação esta que, vinda de quem vem, não deixa de ser significativa sobre o entendimento que mesmo figuras centrais do panorama intelectual mundial, tiveram e têm sobre a mulher…

(…)

(continua)

(por Ruben Marks)

Camille - Uma Mulher
ou
A Paixão segundo Camille

Espectáculo de Ruben Marks, pelo TAN-Teatro a Norte / Ruben Marks


Sobre o espectáculo - 2
(continuação)

(…)

Até à data da Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-65), as mulheres, na civilização ocidental, eram maltratadas e presas só por falarem em público, e só há um século têm estatuto de parceiras iguais perante a lei. Ainda que, na sua aplicação prática, tal estatuto pouco tem de verdadeiro, com os constantes atropelos a que fomos assistindo ao longo do séc. XX. E isto passa-se no mundo “avançado”, porque o que se passa no “outro mundo”, fora da esfera dos países ditos civilizados, é absolutamente vergonhoso, onde centenas de milhões de mulheres ainda são violadas nos seus mais importantes direitos humanos, físicos, psíquicos e morais.

Apesar disso, neste nosso mundo “civilizado” e mesmo com todos os obstáculos que se lhes foram colocando no caminho, as mulheres têm revelado feitos brilhantes, por vezes heróicos, e são responsáveis por uma significativa parte da evolução humana, abrindo, ainda que por vezes de forma trágica, soluções novas e surgindo como arquétipos em muitos domínios. Ainda que não sejam bem reconhecidas nos mais variados domínios e por uma significativa parte da população masculina, como parceiras de iguais direitos, o que se revela de enorme e dolorosa injustiça.

De entre uma vasta plêiade de mulheres talentosas, que deixaram marcas importantes na história, pelos feitos reais e pela directriz afectiva dos seus impulsos emotivos, a vida e o destino de Camille Claudel estão, para mim, no topo do meu apaixonado interesse.

Com este espectáculo, tratando de uma mulher específica, não deixo de apresentar diferentes expressões da paixão feminina, sentimento que, como exprime Kant na sua “Antropologia” é “uma doença que resulta de uma constituição viciada ou de um veneno absorvido”. O sentimento apaixonado a que muitas mulheres se entregaram, determinando a sua vida numa intrincada elaboração inconsciente de embriaguez, esteve, pois, na origem da ideia de montar um espectáculo sobre esta escultora de génio.

(…)

(continua)

(por Ruben Marks)


Camille - Uma Mulher
ou
A Paixão segundo Camille
Espectáculo de Ruben Marks, pelo TAN-Teatro a Norte / Ruben Marks
Sobre o espectáculo - 3
(continuação)

(…)


A História está cheia de outras estórias de vida, de lutas, de percursos de sobrevivência, de medos, de vitimização, de dedicada paixão absoluta, de muitas outras mulheres. A razão por que me envolvi apaixonadamente com a de Camille Claudel, não a sei explicar, mas a tal não será alheio o facto de, por ser dedicada ao Corpo – o meu interesse preferencial, em todas as suas dimensões –, a Escultura ser para mim um campo óbvio de leitura e contemplação, reflexão e entusiasmo. A Escultura é uma empolgante história de movimento.

O dramático da vida de Camille Claudel, que passou de artista brilhante e figura da vida artística parisiense, à reclusão num hospital psiquiátrico durante trinta anos, até à sua morte, faz da sua figura uma personagem lendária, à qual só muito recentemente se começou a fazer justiça.

Cheia de contradições interiores, viveu uma vida verdadeiramente dramática e extremamente dolorosa, que redundou num completo fracasso sentimental. Os maravilhosos dons com que a natureza a dotou, não foram suficientes para a afastar de um destino de desgraça e miséria.

Ao longo da peça, tenta-se mostrar o comportamento paranóico desta genial escultora, que se sente perseguida, que chora, ri, desespera, olha desconfiada, fala sozinha, grita, parte as suas esculturas num assomo de raiva, enquanto fala sobre memórias passadas, contando diferentes acontecimentos com Rodin, com Debussy, com a mãe, com o pai, com o irmão Paul, etc.

Assiste-se a relatos desesperados sobre a sua relação com Rodin, acusando-o de roubo da sua obra e de nunca a ter tomado por mulher, deixando a mãe do seu filho, Rose Beuret. Esses episódios encontram-se referidos em cartas que Camille vai escrevendo/lendo. Também se mostram cenas com os pais, com o irmão e com Rodin, bem como uma dança com o seu amigo Debussy, com quem se especula que possa ter tido um caso, já depois da ruptura com Rodin. E também serão apresentadas, em movimento, algumas das mais significativas esculturas de Camille Claudel.

Neste espectáculo, algumas personagens são desdobradas. Por exemplo, a própria Camille Claudel será representada por 4 elementos, uma actriz que a representa já hospitalizada e mais velha, uma actriz que a representa mais nova, em meia dúzia de situações, uma bailarina e uma adolescente, para uma cena mais infantil com o irmão. Assim como Paul Claudel, desdobrado em adolescente, adulto e bailarino, e Rodin, actor e bailarino.


(por Ruben Marks)



A Valsa
(La Valse)
(1889-1905)

“A Valsa” é geralmente entendida, como uma das melhores e mais famosas criações de Camille Claudel. Muitos críticos de arte, consideram-na mesmo como a primeira ponte para a Arte Nova.

Esta belíssima escultura, representando um casal apaixonado dançando em estado meditativo, é como que um coroamento de tudo o que Camille sonhou na sua vida, mas que ficou inacabado.

“A Valsa” exprime a densidade do desejo, da fantasia e da libido. Ao aproximar os corpos nesta forma delicada e romântica, apesar de se poder apreender dela o furor do momento em que foi feita, Camille abandona-se no tempo, perdida nos braços de uma imaginação palpitante, visão utópica do espírito.

A mulher (Camille?) estende os braços, convida o seu par (Debussy) a enlaçá-la pela cintura e entrega-se nas voltas da dança. O vestido arrasta-se no movimento rodopiante e a gargantilha em volta do pescoço, reflecte a luz da sala. A sensação diáfana do sonho, parece estar ali exposta. Já não sente o seu corpo, no sussurro da respiração dele ao seu ouvido.

Na versão original de “A Valsa”, os bailarinos estavam nus, mas o Ministério de Belas Artes escandalizado com a audácia, exigiu que a escultora os vestisse. Camille envolveu-os, então, num tecido amplo, que terminava num capuz rendado ao estilo Art-Nouveau. Mais tarde, acabou por despir a mulher até à cintura, servindo o tecido como contrapeso ao desequilibro do casal, que se mantém num equilíbrio instável.

Eis algumas opiniões no seu tempo:

Esta languidez e este arrebatamento, confundidos num só ritmo, que não desfalece mais que para levantar o voo mais inesgotavelmente, não estava esgotado, quando morreu, nem a sua sedução, nem o seu consolo
Robert Godet (escritor amigo de Claude Debussy)

O ritmo, a harmonia e a embriaguez da valsa estão aí, mas também a paixão e a concordância dos corpos. Ambos são energia atormentada e fineza nervosa. É um homem e uma mulher vacilando na paixão que os une numa sensualidade impetuosa. A Valsa é um poema de uma louca embriaguez: os dois corpos não são mais que um, o prestigioso torvelinho enlouquece-os, a bailarina morre de voluptuosidade
Louis Vauxelles (influente crítico de arte francês – 1870-1943)




(por Ruben Marks)

Camille - uma Mulher
ou
A paixão segundo Camille


O espectáculo, baseado na obra dramatúrgica de Ruben Marks

e cujo trabalho de montagem agora se inicia,

vai ser levado à cena pelo grupo portuense "TAN-Teatro a Norte"

(de TAN = divindade do fogo na mitologia celta - o que permite a interpretação do Teatro como exploração do princípio fundamental da energia pura).


Ficha técnica da produção:


Direcção artística - Ruben Marks
Encenação, Coreografia - Ruben Marks
Cenário – Jaime Azinheira
Figurinos – Susanne Rösler (com apoio do guarda-roupa do TEP)
Design de Luz – Ruben Marks
Iluminação e Sonoplastia – Eduardo Brandão
Apoio técnico – Eduardo Brandão, José Dias e João Abreu

O espectáculo
"Camille - Uma Mulher
ou
A Paixão segundo Camille",
pelo grupo "TAN - Teatro a Norte / Ruben Marks",
tem o seguinte elenco:

Camille internada - Olga Dias
Camille jovem - Matilde Nicolau
Paul jovem - Hugo Faria
Rodin - Júlio Maciel
Pai - David Cardoso
Mãe - Margarida Machado
Alfred Boucher (escultor) - Aquiles Dias
Mathias Morhardt (redactor do jornal “Le Temps”) - Adriano Martins
Octave Mirbeau (escritor e crítico de arte) - Júlio Maciel
Debussy (compositor) - António Portela
Camille e Paul em criançaJúlia Valente e Hernâni Pinheiro


As coscuvilheiras
(Les Bavardes ou Les Causeuses ou La Confidence)

(1895-1905)

Em 1895, já depois da primeira separação de Rodin, Camille Claudel expôs em gesso “As coscuvilheiras” (quatro mulheres sentadas a coscuvilhar), que representava uma vulgar cena do quotidiano e que foi muito elogiada pelo estilo e pelo tema, dizendo-se à época que era “uma maravilha de compreensão e sentimento humano”.

Trata-se, na realidade, de uma crítica da artista e intelectual ao mundo feminino banal. É uma mulher artista a denunciar um mundo estereotipado de banalidades.

Num canto íntimo, quatro mulheres inclinadas, o corpo convergindo para ouvirem melhor, falam e gesticulam ao ouvido umas das outras e submetidas a uma mesma vontade de transmitir um segredo ou uma fofoquice.

É uma peça bastante pequena e delicada, fora dos padrões tradicionais para as esculturas da época, que representa o universo feminino, com simplicidade e lucidez. Num espaço de intimidade cuidadosamente idealizado, as mulheres falam ao mundo interior da alegria, da tristeza, do medo e do desapontamento.

Camille começa, finalmente, a criar um estilo próprio, inspirado nos seus sentimentos, na sua própria história e na observação do mundo à sua volta. É a primeira vez que Camille, valorizando as subtilezas humanas com grandeza e liberdade, utiliza uma cena do quotidiano como tema para uma obra sua, manifestando claramente uma tentativa de libertação da influência de Rodin.

Trabalha mais tarde a mesma escultura em ónix, material extremamente duro e muito difícil de trabalhar. Poucos escultores o utilizaram.



(por Ruben Marks)





Em toda a história do internamento de Camille Claudel,
de contornos muito estranhos, muitas questões se colocam
e para as quais dificilmente se encontram respostas

A partir de 1898, quando se dá a ruptura definitiva entre Camille e Rodin, Camille fecha-se no seu estúdio, entrega-se a uma solidão obsessiva, caracterizada pela pobreza e pela ruína física e mental. Só sai de madrugada, para encontrar alguma comida para a sua miserável alimentação, e dá início a uma espécie de exorcismo, destruindo grande parte da sua produção, como forma de aliviar a dor do abandono e de se livrar daquilo que ainda a vinculava ao homem amado.

Rodin tenta vê-la, mas é rechaçado, transformando-se num inimigo perseguidor, dentro do seu delírio paranóico. Camille era mulher de orgulho firme, arrogante timidez, violência de sentimentos, que surpreendia com as suas opiniões originais e maneira de falar. Aliás, o seu carácter irascível nota-se bem visível em algumas das suas criações. Pelo que não surpreende que tenha ficado ferida e desorientada, após ter decidido romper definitivamente com Rodin, quando ele não cumpriu a promessa de se casar com ela.

O pai de Camille, que a protegia, morreu a 3 de Março de 1913 e, portanto, logo no dia 10, por ordem de sua mãe e de seu irmão, dois enfermeiros-guardas do Hospital Psiquiátrico de Ville-Evrard, irromperam pelo apartamento e levaram-na à força. Este internamento, aparentemente sem grandes motivos de peso, não foi muito claro nem compreensível. Permanecem alguns mistérios. Ville Evrard era um lugar de «internamento voluntário», portanto ele só seria possível com a sua própria assinatura na ficha de entrada. Que aconteceu, portanto? Teriam a mãe e o irmão Paul movido influências para que fosse ultrapassado esse requisito?

Parece que o motivo oficial deste internamento se deveu a queixas dos vizinhos, inquilinos na velha casa que habitava na Avenida Bourbon. Segundo o próprio Paul Claudel, os guardas encontraram o apartamento numa desordem e numa sujidade indescritível. Gesso e argila por todo o lado, na parede, presas com alfinetes, as catorze estações da Via Sacra.

Após um ano nesse Hospital e por causa da guerra, que, entretanto, havia explodido, Camille é transferida para um asilo de doenças mentais, o Hospital Psiquiátrico de Montdevergues, perto de Avignon, onde ficará prisioneira durante 30 anos até à sua morte. Ora, o que se sabe, lendo relatos da época, é que Montdevergues «era lugar para se ir morrer». Por exemplo, no diário local «A Lanterna», aparece nessa época um ataque muito duro contra o director do Hospital, desenhado como um lugar sombrio, o que vem confirmar as palavras da própria Camille, nas suas lancinantes cartas, onde tece descrições perfeitamente patéticas da forma como eram tratados os doentes.

Será que esse seu comportamento justificava uma reclusão num local tão horroroso? Porque ficou tão longe de todos e não lhe permitiam muitas visitas? Como é que durante trinta anos, a mãe, a irmã Louise até o seu querido irmão Paul, que, entretanto, era já um célebre escritor e diplomata, chegando a ser Embaixador da França, puderam ignorar os apelos e os pedidos dramáticos de Camille para sair dali? Quando ela não pedia mais do que a paz e o calor da sua casinha de Villeneuve? («Deus! Como eu quereria estar em Villeneuve!»; «O meu sonho é voltar já para Villeneuve e não me mexer mais! Preferia uma quinta em Villeneuve do que um lugar de primeira pensionista aqui...»; «Que alegria, se eu pudesse regressar a Villeneuve!»; «Como eu queria estar sentada à lareira em Villeneuve!»).

Mesmo admitindo que o seu estado, com acessos violentos de paranóia, obrigasse a períodos de internamento, porque não a transferiram para outro local, com cuidados apropriados, e a deixaram ficar ali, onde foi assistindo à morte por frio das suas companheiras?

A sua mãe nunca a irá visitar e rejeita com firmeza o conselho dos médicos para a levar de volta ao lar. O seu irmão Paul visita-a poucas vezes e nada faz para amenizar o sofrimento de Camille, apesar das cartas suplicantes que ela lhe escreve, narrando as condições sub-humanas em que vive. Chegando ao extremo de, em 1933, se negar a pagar-lhe uma pensão hospitalar, ficando ela como indigente no hospital.

Nas suas cartas, ouvem-se os gritos de apelo à liberdade : “O meu lugar não é aqui, é preciso tirarem-me daqui; depois de 14 anos de uma tal vida, reclamo a liberdade em grandes gritos”, escreve Camille à sua mãe em 2 de Fevereiro de 1927. Ou nesta outra “Se me concedesses o quarto da senhora Régnier e a cozinha, mesmo que não utilizasse o resto da casa. Não farei absolutamente nada reprovável. Já sofri tanto…”

E é esperando em vão a visita da sua irmã e sua mãe, que Camille morre em solidão e abandono.

Além de inqualificável, é tudo muito misterioso, de facto!


(por Ruben Marks)



Camille - Uma Mulher
ou
A Paixão suicida de Camille

Espectáculo pelo "TAN-Teatro a Norte"


Apoios



Os ensaios para o espectáculo começaram e mantêm-se em ritmo normal, apesar de termos tido alguma dificuldade em conseguir uma sala de ensaio suficientemente grande para poder albergar, para além da parte de Teatro, também as partes de Dança, que requerem sempre mais espaço.

Para a parte do texto, ensaiámos inicialmente na Casa da Beira Alta, a cuja Direcção agradecemos na pessoa de Fernanda Braga da Cruz. E, precisamente neste momento, acabámos de ter o apoio da Associação Mutualista Benéfica-Previdente, que, gentilmente, nos cedeu uma sala grande, e a quem agradecemos nas pessoas de Carlos Salgueiral e Carla Mendes.

Porto, 12 de Fevereiro de 2010

Ruben Marks

A tocadora de flauta
(La Sirène ou La Joueuse de flûte) (1900-1905)

Uma das últimas esculturas de Camille Claudel, que parece ter sido a sua predilecta, foi “A tocadora de flauta”. Trata-se, uma vez mais, da expressão real do movimento da vida, do movimento de um corpo enlevado e embalado pela música interior da artista, num momento em que ela se ressuscita a si mesma. É, sem dúvida, uma magnífica obra de arte, que reflecte o estilo de Camille na sua máxima plenitude, quando, em termos técnicos, já tinha alcançado a harmonia da perfeição.

Apesar do descontrolo mental que a começava a consumir, após a separação definitiva de Rodin, com a morte a cercá-la lentamente, numa solidão desesperante a que se entregou, Camille ainda tem forças para talhar, nesta pequena escultura, um magnífico e entusiasmado hino glorificando a vida. Com ela, quis como que imortalizar a sua amarga vida, com um belo canto de apaixonado sentimento.

“A tocadora de flauta” evoca o desejo do triunfo, de alguém que está amarrado a um destino e que se liberta das trevas para seduzir e encantar. A música é, seguramente, enfeitiçadora, funcionando como uma atracção inspiradora. Estamos perante um artifício da sedução de um corpo de mulher jovem, na frescura da vida, como que a querer afastar o fim trágico que esperava Camille.

A forma volumétrica da composição, traduz uma relação com o espaço, cuidadosamente marcada pelos limites arredondados do corpo, numa esfumada mistura com o instrumento.

A obra foi exposta pela primeira vez no Salão dos Artistas franceses em 1905 e, no mesmo ano, na Galeria de Eugène Blot, seu amigo. A crítica da época foi entusiástica e unânime em considerar que Camille havia atingido o auge da sua arte: “Vê-se uma sereia, sentada com os joelhos apertados e todo o corpo elevado aos lábios, onde a flauta divina derrama, com o seu agudo fluxo, paixões extra-humanas. Com a garganta insuflada pelo agitar de asas de pombas, do vento das florestas e do furor dos mares, provoca a Musa a dizer-lhe: Tu não és a que canta, tu és o próprio canto no preciso momento em que a escultura é concebida”, escreve o crítico de arte do jornal ".

Esta obra, "A tocadora de flauta" ou "A Sereia" (“La Sirène”, como também lhe chamou), está sobretudo próxima de peças antigas, como "La jeune fille à la gerbe" ou de "A Valsa", com aquelas asas esvoaçantes características da Arte Nova. Esta ambiguidade dificulta a datação e mostra que, depois de 1897, Camille utiliza com frequência modelos de obras antigas, sem dúvida para ultrapassar a crise de inspiração em que se encontrava.

(por Ruben Marks)


O Homem acocorado
(L'Homme penché)
(1886)

Em 1885, Camille havia esculpido uma “Mulher engrupada” (La femme accroupie) e no ano seguinte modelou este “Homem acocorado”. A figura aparece numa posição contorcida, com uma musculatura bem delineada e expressiva, e mostrando algumas deformações anatómicas. Estes aspectos, de certo modo novos no trabalho criativo de Camille, denunciam uma influência de Rodin. Com 22 anos, Camille vivia um período de felicidade na relação com Rodin, trabalhando afincadamente nas obras dele, com extraordinária e apaixonada entrega. Não será, assim, de admirar que se tenha deixado influenciar pelo lado mais viril dos corpos musculados do seu Mestre.

Paul Leroi comenta assim esta escultura: "Rodin é de uma personalidade de tal modo forte e a sua arte de tal modo superior, que é preciso que Camille não se deixe absorver por uma influência naturalmente fascinante. Numa palavra, é preciso que a jovem artista seja exclusivamente Camille Claudel e não um reflexo de Rodin".

Camille experimenta, com este « O Homem acocorado », um primeiro estudo para o corpo masculino de Sakountala, que inicia neste mesmo ano de 1886 e onde revela o seu estilo muito pessoal e já sem qualquer influência de Rodin. Ao contrário, Antoine Bourdelle (escultor francês contemporâneo de Camille), parece ter-se deixado influenciar por Camille, pois, no seu “Hamlet” de 1891, encontramos perturbadoras semelhanças com o primeiro gesso de “O Homem acocorado” de Camille.

O modelo que Camille utiliza para esta escultura, um italiano, será o mesmo que também pousou para ela em “Giganti” e “Sakountala”.
(por Ruben Marks)


Camille Claudel e o ambiente cultural da sua época

O ambiente cultural e artístico na segunda metade do séc. XIX, em França, mas especialmente em Paris, fervilha de movimentos intelectuais, literários e artísticos, como nunca antes acontecera no mundo. Trata-se de uma época única na história da arte mundial, uma época de fulgor brilhante, uma autêntica forja em que se misturam e convivem correntes e estilos dos mais diversos e díspares, um louco melting-pot de imensos artistas trilhando caminhos muito díspares. Era um mundo de ansiosa procura artística e literária, onde tudo coexistia: Romantismo, Parnasianismo, Ultra-romantismo, Realismo, Naturalismo, Simbolismo.

Que dizer, de facto, desta autêntica plêiade de artistas contemporâneos de Camille Claudel, alguns dos quais com quem terá mesmo convivido - Auguste Renoir, Henri Rousseau, o fabuloso Toulouse-Lautrec, Claude Monet, Paul Cézanne, Edgar Degas, Vincent Van Gogh, Paul Gauguin, Charles Baudelaire, Victor Hugo (ambos já em avançada idade), Paul Verlaine, Arthur Rimbaud, Émile Zola, Honoré de Balzac, Anatole France, Stéphane Mallarmé, Jules Renard, Pierre Louis, André Gide, Walt Whitman, Gabriele D’Annunzio, Loïs Fuller, Isadora Duncan, Antonin Dvorák, Franz Liszt, Georges Bizet, Ruggero Leoncavallo, Richard Wagner, Claude Debussy, Sarah Bernhardt, Henrik Ibsen?

É, pois, neste fabuloso cadinho artístico que Camille Claudel nasce, vive e produz a sua obra, frequentando primeiro os círculos literários de seu irmão Paul, onde se encontram personalidades como Stéphane Mallarmé, Jules Renard, Pierre Louis, André Gide, Claude Debussy ou ainda o americano James Whistler, e depois, ainda que contrafeita, acompanhando Rodin, principalmente às terças-feiras nas tertúlias em casa de Mallarmé.





(por Ruben Marks)



Notícias dos ensaios do espectáculo


Os ensaios estão a decorrer normalmente e, na medida em que os papéis e a prestação de cada um aparecem mais consistentes, já se começa a distinguir toda a estrutura dramática da proposta.

Na Casa das Glicínias, gentilmente cedida pela Associação Mutualista Benéfica-Previdente, de 2ª a Sábado, o grupo TAN-Teatro a Norte, vai trabalhando à volta da densidade trágica do mundo interior artístico de Camille Claudel.


“A finalidade da arte não é agradar, mas elevar. O prazer é um meio, não um fim”, escreve Fernando Pessoa. E nós, todos os dias nos ensaios, vamos sendo confrontados com a vida de uma artista que procurou sempre, de forma apaixonada, mostrar através da sua arte um mundo de questões em busca da verdade. E o melhor caminho em busca da elevação das nossas vidas, é precisamente o caminho em que nos questionamos permanentemente.

Estamos ainda com dificuldade em encontrar uma sala de teatro disponível para acolher a estreia, dadas as exigências cenográficas do projecto, mas pensamos poder manter a ideia de estrearmos em Abril.




(por Ruben Marks)


Um amor de perdição

Alvo da terrível hostilidade da família e da indiferença da sociedade, Camille Claudel, dotada pela natureza de maravilhosos dons que lhe deram o génio fulgurante da criação artística, tornou-se uma personagem lendária, queimada pela paixão e pelo talento. Apesar de uma luta violenta pela afirmação, o lugar menor e secundário para o qual Camille é remetida em vida, adivinha-se ser o resultado das normas sociais da época, que não aceitavam a mulher em lugares de destaque. Lançada numa sufocante luta, as suas forças e a sua lucidez foram-se desgastando, como resultado da relação umbilical e absorvente com Rodin, Mestre e amante, teia psicológica e sentimental de que nunca conseguiu libertar-se.

A sua história é um típico caso de amor de perdição. Completamente dominada por uma paixão destruidora, absolutamente suicida, Camille lança-se no abismo para uma queda fatal. É uma história que, nos aspectos sociais e comportamentais, se pode dizer como sendo um prolongamento do espírito dos ideais românticos dos finais do séc. XVIII, que perfilhava uma explosiva mistura de sentimentos e comportamentos de exacerbada paixão, solidão, miséria, loucura, sofrimento, revolta e apelo suicida, o que, afinal, representa praticamente a súmula da vida de Camille Claudel.

Na realidade, o Romantismo não era só um estilo artístico, mas, também e acima de tudo, uma verdadeira representação de uma atitude existencial de forte reacção contra a ditadura racionalista do Iluminismo do chamado Século das Luzes. Além do culto do omnipresente, os românticos defendem os valores intrínsecos da subjectividade: a emoção apaixonada, o sentimento de entrega e de indiscutível dedicação à Arte e a insaciável procura da imaginação. Era também um período fortemente influenciado pela liberdade conquistada na Revolução Francesa, pelo que a liberdade de criação era defendida com enorme determinação.

Itália, Alemanha e Inglaterra, constituem o berço do Romantismo, mas é em França que o Romantismo ganha força como em nenhum outro país na primeira metade do séc. XIX, e é através dos artistas franceses, que os ideais românticos se espalham pela Europa e pela América.

Mas, também é em França que, nas últimas décadas desse século, nasce o Realismo em reacção contra o Romantismo e Camille vive intensamente esse período. Mesmo no final do século desenha-se o conceito de vanguarda, contra o Realismo, e Camille espiritualmente rica e independente, mesmo não aderindo ao Vanguardismo puro, não se consegue inserir no mecanismo financeiro do mercado de arte que surgia nessa altura e que Rodin defendia. Não se identifica, de forma alguma, com a realidade desumanizada que o Vanguardismo propunha. Torna-se desenraizada e revoltada, precisamente na altura em que a sua vida sentimental começa a ruir e os contornos da sua vida começam a desfocar-se.

Aniquilada interiormente, como o mundo em ruínas que a envolve, Camille começa a admitir alguma impotência em conseguir impor-se, encerra-se em si mesma envolta pelo silêncio das suas esculturas e perde certezas que definem seres e mundo e o equilíbrio que regula as suas relações. É, pois, natural que se recuse a medir forças dialecticamente com a realidade exterior.


(por Ruben Marks)


Sobre a Música no espectáculo "Camille-Uma Mulher"
- A opção por Compositores Contemporâneos de Camille



O critério que segui para a escolha da banda sonora, obedeceu a um princípio para mim natural. Escolhi unicamente música de compositores contemporâneos de Camille Claudel. Com duas únicas excepções, Gaetano Donizetti, anterior, e Steve Reich, posterior.

O primeiro, porque achei apropriado incluir no espectáculo a cena de loucura de “Lucia Lammermoor”, e o segundo, porque a sua composição “Violin Phase” respondia melhor à construção insistente e violenta de “A Porta do Inferno”, obra de Rodin na qual Camille colaborou, modelando, como se sabe hoje, as mãos e os pés de todas as figuras ali representadas.

Eis os compositores escolhidos:
Claude Debussy; Léo Delibes; Gaetano Donizetti; Paul Dukas; Edward Elgar; Gabriel Fauré; Alexandr Glazunov; Gustav Mahler; Pietro Mascagni; Carl Orff; Giacomo Puccini; Richard Wagner; Maurice Ravel; Steve Reich; Nikolai Rimski-Korsakov; Erik Satie.


(por Ruben Marks)



A Dança

A peça “Camille - Uma Mulher ou A Paixão suicida de Camille”, inclui vários momentos de dança. Quase todos eles com o objectivo de, através do movimento, reforçar a esculturalidade da obra de Camille Claudel.

Além da representação figurativa de meia dúzia das suas esculturas, surgem também imagens de corpos esculpidos, organizados em tensão conflituosa e satisfazendo a necessária tridimensionalidade emocional da ideia subjacente.

Esses belos momentos de exuberância de movimento, consagrada pela vitalidade expressiva das figuras, estão a cargo de um elenco de bailarinos, constituído por:


Ana Francês
Anabela Oliveira
Cristina Silva
Guilhermina Costa
Inês Clavel
Marina Vasques
António Portela




A ruptura do equilíbrio na obra de Camille Claudel

Em algumas das obras de Camille Claudel, nota-se um claro desafio às leis do equilíbrio. Umas mesmo no limite do possível (“A Valsa”, “A Fortuna”) e outras já no domínio do fisicamente impossível (“A Implorante”). Este jogo do equilíbrio instável, significa uma nítida vontade em representar as verdadeiras forças do movimento, tanto do meu agrado, como também pode significar um forte sentimento de falta de identidade, que deriva de várias situações insuportáveis e traumáticas, que a atormentaram desde criança.

Em primeiro lugar com a sua mãe, ao considerá-la um objecto de compensação pela perda do seu primeiro filho. Camille foi concebida durante o período de luto da mãe e não será, aliás, por acaso, a atribuição do nome de Camille, que, em francês, tanto se dá a raparigas como a rapazes. A situação traumática que a mãe viveu, que tanto queria ter tido um filho, pode explicar essa decisão. Mais difícil de compreender, porém, será o sentimento de autêntico ódio com que sempre terá tratado Camille.

Parece, no entanto, que essa atitude não seria só dirigida contra Camille, pois Paul Claudel escreveria mais tarde: “A nossa mãe era o contrário duma mulher do mundo, ocupando-se de confeccionar as roupas, cozinhar, jardinar, tratar dos coelhos e das galinhas, sem um momento para pensar nela ou nos outros da família. Doçura, delicadeza e suavidade, eram maneiras que não se usavam em nossa casa. A nossa mãe nunca nos abraçou.”

Os sucessivos traumatismos e desequilíbrios que Camille sofreu em criança, provocados pelo desprezo da mãe e pela permanente ausência do pai, foram-lhe nefastos para a procura de uma identidade, dando-lhe todas as justificações para, no silêncio da sua mente, viver o drama insuportável de insegurança no convívio, que a levou a ter comportamentos reactivos de violência e a detestar as reuniões “mundanas” a que ia, primeiro na companhia de Paul e, mais tarde, na companhia de Rodin.

A representação da ruptura do equilíbrio é, ao mesmo tempo, fascinante e preocupante, pois pode indiciar um estado de algum desequilíbrio mental, que a leva, já no final da sua carreira, que não da sua vida, a atribuir-se a si própria a representação da Medusa, transformada por Afrodite num monstro de serpentes no cabelo, temido e desprezado pelos homens e pelos deuses.

O forte registo de desequilíbrios que se vê nalgumas das suas criações, pode ser, talvez, reflexo de um sofrimento interior de tal modo dominador, que acabamos por não saber se não terá sido esse mesmo sofrimento que a conduziu à realização da obra. Como se a escultura, para ela, representasse uma tentativa de se agarrar a qualquer coisa, que a aliviasse da psicose que a atormentava. Aliás, “La Niobide blessée”, “Clotho” e “L’âge mûr”, por exemplo, são bem representativas da sua história de vida, bastante descompensada.

A segurança básica que falta a Camille na infância, pode justificar a dolorosa ameaça ao seu equilíbrio, que se traduz no desequilíbrio espacial dos seus personagens. Na sua ânsia de fixar o fugaz, procurou o frágil equilíbrio, sentimento que a dominou desde criança.


(por Ruben Marks)























Clotho
(1893)


Na Teogonia grega, Clotho é uma das três Parcas (as outras são Lachésis e Atropos), espíritos femininos que determinam o destino dos homens. Também chamadas de Moiras, estão acima dos deuses do Olimpo e são as “fiadeiras do destino”. A acção das Parcas começa no berço e só termina na tumba, intervindo sobretudo no momento da morte.

Filhas da noite (Nix), que as teve sem se unir a outro deus, tal como ela própria foi gerada pelo deus primordial Caos, as Parcas exprimem a cadeia irresistível de acontecimentos na trama da vida. Cada uma tem uma tarefa - Lachésis é a medidora, distribuidora e avaliadora e Atropos é a que corta o fio com a sua tesoura mágica -, mas Clotho e é a mais poderosa das três, porque fia o fio da vida com o seu fuso mágico e tem o poder de o mandar cortar quando quiser.

A arte de tecer e fiar é obra e projecção da Grande Mãe, que tece a teia da vida e fia a meada do destino. Como mãe suprema, ela tece a vida humana, assim como a escuridão e a luz.

No poema de Hesíodo, a "Genealogia dos Deuses", as Parcas juntam-se às Queres (Keres) e tornam-se, como estas, divindades da morte violenta. Ambas simbolizam o destino cruel, fatal e ao qual é impossível escapar.

Ao criar “Clotho”, Camille quis representar o espectro da velhice, despojado de qualquer traço benevolente. Criou a visão anatómica de um corpo de velha, que é, afinal, a metamorfose que ocorre com a mulher ao longo da vida, usando a figura mitológica da Parca ou da Morte que fia o destino. Um espírito malévolo que ordena o tempo, mostrando o começo, o percurso e o fim da vida, e recolhendo o passado para desenhar o futuro.

Nesta imagem de mulher velha, Camille reúne as figuras femininas do seu ódio, a mãe Louise e Rose Beuret, criando uma imagem horrível da feminilidade, representativa da sua sedução pela morte. Tema que, aliás, seria retomado em “A Idade madura”, onde a velha aparece como um anjo negro, que leva o homem nos seus braços de feiticeira, afastando-o do seu amor implorante.

Tanto “Clotho” como “Clotho calva”, são obras de evidente simbolismo e de intencional repugnância, em que Camille despreza a aparência externa, pretendendo representar a incompletude da própria vida. Esta dimensão do inacabado, traz ao espectador a subjectividade e a liberdade da interpretação, que deve existir na linguagem poética, fazendo do observador também sujeito do objecto artístico.

Camille afasta-se intencionalmente da perfeição artística e as suas “Clotho” têm de ser vistas e entendidas de forma dinâmica nas suas várias vertentes, nunca se lhes encontrando um fim, pois de cada vez que as olhamos percebemos coisas diferentes.

A estética destas esculturas está carregada da estranha beleza de um corpo a definhar, que é repulsivo e que não agrada. No entender de Fernando Pessoa, A finalidade da arte não é agradar, mas elevar. O prazer é um meio, não um fim”, e o prazer da contemplação desta obra de Camille Claudel, é um meio para abrirmos a alma a um turbilhão de questões, que elevam o sentido da procura da verdade.

A relação entre beleza e prazer, na obra de Camille, não é objectiva e os corpos de “Clotho” entram-nos pelos sentidos de diferentes maneiras, conforme cada nova interpretação e consequente nova questão que se nos coloca. Os corpos nestas duas esculturas são como que um fetiche da forma, da história de tudo que circunda e inspira a empatia pela arte. Camille escreve com eles a própria história do corpo.

Em 1882, no início da sua carreira, Camille tinha criado um retrato realista de uma velha empregada de olhar indiscreto, sorriso astuto e queixo proeminente - “A velha Hélene” -, que demonstra já uma precoce obsessão pela decrepitude da mulher.

(por Ruben Marks)


Do início dos ensaios do espectáculo
"Camille- Uma Mulher
ou
A Paixão segundo Camille"


A mãe, Louise-Athanaïse Cerveaux (Alzira Santos), o irmão, Paul Claudel (Hugo Faria) e o pai, Louis-Prosper Claudel (David Cardoso)






Rodin (Júlio Maciel)

Camille, internada (Olga Dias)

Camille, jovem (Matilde Nicolau), Rodin (Júlio Maciel) e Alfred Boucher (Aquiles Dias)


Camille, internada (Olga Dias),
Octave Mirbeau (Júlio Maciel),
Alfred Boucher (Aquiles Dias)
e Mathias Morhardt (Adriano Martins)


Camille, internada (Olga Dias), enfermeiros do Hospital Psiquiátrico (Adriano Martins e António Portela)

Ruben Marks ensaia Júlia Valente (Camille Claudel, adolescente) e Hernâni Pinheiro (Paul Claudel, adolescente)


Camille-Uma Mulher

Ensaio em 3 Março 2010



Olga Dias (Camille Claudel, internada)





















Matilde Nicolau (Camille Claudel, jovem)


















Anabela Oliveira (Camille Claudel, bailarina)


















Júlia Valente (Camille Claudel, adolescente)




















Camille-Uma Mulher


Ensaio em 3 Março 2010








Júlio Maciel (Rodin)





Camille-Uma Mulher

Ensaio em 3 Março 2010




Hugo Faria (Paul Claudel)






Hernâni Pinheiro (Paul Claudel, adolescente)






Camille-Uma Mulher
ensaio em 3 Abril 2010





Alzira Santos (Louise-Athanaïse Cerveaux, a Mãe)
















Camille-Uma Mulher


ensaio em 3 Abril 2010



António Portela (Debussy, Homem acocorado, enfermeiro, bailarino)


Camille-Uma Mulher


Miklail de Ceita (Kley)
(interpreta A Morte, que conduz as pessoas até à "Porta do Inferno",
com alguns versos de "O Inferno" da "Divina Comédia" de Dante)